Quando o caminhoneiro Marcondes Mendonça, 27, inicia a viagem para
transportar milho do Centro-Oeste do Brasil até o porto de Santos (SP),
no litoral paulista, ele reza para ser protegido dos buracos nas
rodovias e dos motoristas alucinados, e pensa com terror nos lamentáveis
banheiros que precisará encarar durante os sete dias de estrada.
O gargalo da infraestrutura é um dos maiores desafios enfrentados pelo
Brasil, sexta maior economia mundial, com chances de desbancar na
temporada 2012/13 os EUA, líder mundial na produção de soja.
Ele também se prepara para outros inconvenientes: congestionamentos,
atrasos no porto e uma burocracia que cada vez mais atrapalha o fluxo de
bens e serviços no maior país da América Latina
Neste contexto de aumento de produção e logística deficitária, os
transportadores avaliam que o preço do frete rodoviário deve crescer
cerca de 30%.
A escassez de caminhoneiros e uma nova lei que determina períodos
mínimos de descanso para esses profissionais também colaborarão para o
aumento dos custos da nova safra, já que o tempo de viagem crescerá.
Mendonça, o jovem caminhoneiro, pai de dois filhos e fã de música
sertaneja, trabalha para uma cooperativa de frete e faz bico como
instrutor para futuros colegas.
"Que Deus nos proteja", diz ele, com a voz impondo-se a um chiado do freio a ar do seu veículo.
A reportagem seguiu com o veículo por 1.600 dos 2.100 quilômetros da
viagem, percorrendo muito asfalto danificado, lembranças de acidentes
mortais e refúgios noturnos com espaço para um último caminhão.
A viagem começou em Mato Grosso e atravessou outros dois Estados até chegar ao porto de Santos.
Nesse percurso, Mendonça enfrentou condições conhecidas por qualquer
caminhoneiro brasileiro --longas jornadas de trabalho, solidão, comida
ruim.
O custo do frete nesse trajeto representou quase 40% do valor pelo qual a
carga de 37 toneladas de milho foi negociada em Santos.
Para percorrer uma distância semelhante nos EUA, principalmente sobre barcaças, o custo seria de apenas 10% do valor da carga.
Mesmo percorrendo distâncias semelhantes, o transporte de produtos no
Brasil também pode demorar três vezes mais do que na China, país que tem
usado seu sucesso econômico para investir maciçamente em estradas,
ferrovias e portos.
"A logística está congestionada", disse Glauber Silveira, produtor de
Mato Grosso e presidente da associação dos sojicultores do Brasil, que
perdem um quarto do seu faturamento com o transporte. "O comprador está
perdendo, e o produtor também."
Com o vasto território, abundância de água e fazendas de alta
tecnologia, o Brasil é o maior produtor mundial de açúcar, café e suco
de laranja, além de liderar a exportação de carne bovina e de frango e
estar prestes a se tornar o maior em soja.
Mas a vantagem que o Brasil costumava ter em termos de custo está sucumbindo ao preço do transporte.
O frete da fazenda ao porto já custa no Brasil mais do que o dobro do
frete marítimo até a China, e essa relação está crescendo rapidamente
por causa do pagamento de melhores salários aos caminhoneiros e da
entrada em vigor da lei que exige descanso mínimo para eles.
Por causa dessa elevação de custos, os negociantes de produtos agrícolas
estão sendo obrigados a pagar mais pela soja brasileira só para
garantir a continuidade das lavouras.
Caso os preços se aproximem demais do custo, isso irá desincentivar
"seriamente" a produção brasileira, segundo Kona Haque, analista do
Macquarie Bank.
A presidente Dilma Rousseff divulgou recentemente planos para atrair US$
66 bilhões em investimentos privados para estradas, ferrovias e outras
instalações.
Eles incluem o prolongamento de uma rodovia até um terminal fluvial no
rio Tapajós, afluente do Amazonas --apesar de ter alguns dos maiores
rios do mundo, o Brasil realiza pouco transporte fluvial de cargas.
Essa nova ligação oferecerá, a partir de 2014, uma redução de 900
quilômetros no trajeto até o Atlântico, mas a capacidade das barcaças
ficará limitada por causa da pequena profundidade dos rios.
FORA DOS TRILHOS
Da cabine do caminhão guiado por Mendonça, descortina-se uma visão
privilegiada do abismo que separa as ambições de primeiro mundo do
Brasil das condições bem mais modestas da vida real.
A viagem teve início na segunda-feira em Rondonópolis, entreposto
logístico no sul de Mato Grosso. A essa altura, Mendonça já havia
passado três dias em viagem até uma cidade, mais ao norte, onde lotou
suas duas carretas com milho.
De Rondonópolis, ele seguiu para o sul. Rosários de contas pendiam do espelho retrovisor, acompanhando cada balanço do caminhão.
Três horas depois da partida, o caminhão chegou a Alto Araguaia, onde a
jornada de Mendonça já poderia terminar. Lá, a empresa América Latina
Logística opera uma ligação ferroviária direta até Santos.
Cada trem da companhia, com 80 vagões, pode transportar o equivalente a
230 caminhões articulados como o de Mendonça, mas consumindo o mesmo
diesel que apenas 40 carretas.
No entanto, a demanda elevada depois da safra faz com que os trens
fiquem lotados, e os preços não compensam muito, segundo os produtores.
Além disso, o transporte por trem leva o mesmo tempo, pois os vagões
demoram muito para serem carregados nas várias paradas do percurso e
descer a serra do Mar, logo antes de chegar ao porto.
A rede ferroviária brasileira, de 29 mil quilômetros, é hoje menor do que foi há 90 anos.
Como parte do seu projeto de infraestrutura, o governo Dilma está
investindo R$ 22,4 bilhões para construir duas novas ferrovias
importantes para atender ao cinturão agrícola. Uma delas será no sentido
norte-sul, e a outra, no eixo leste-oeste.
Empresas de commodities dizem que há urgência nessas obras. Numa
pesquisa feita pela Fundação Dom Cabral junto a 126 empresas que geram
mais de um quarto do PIB brasileiro, a principal sugestão para a redução
do custo do frete é a construção de mais ferrovias.
Os economistas têm dificuldades para quantificar o impacto da
infraestrutura precária sobre a economia, mas concordam que as
limitações na rede de transportes e a saturação dos portos impedem a
economia de crescer de modo consistente acima de 4% ao ano --taxa
necessária para que o Brasil alcançasse o status de nação desenvolvida,
segundo especialistas.
A maioria dos novos projetos ferroviários ainda está a pelo menos cinco anos da conclusão.
NA BOLEIA
E assim Mendonça seguiu viagem. Antes da meia-noite, ele parou num posto
com área de descanso. Dormiu num colchão no fundo da cabine.
Na terça-feira, o veículo chegou à divisa com Mato Grosso do Sul.
Mendonça contava sua história para ajudar as horas a passarem. Nascido
no vizinho Goiás, ele é filho e irmão de caminhoneiros. Ávido por
aprender, guiava os caminhões dos clientes pelo pátio da borracharia do
seu tio.
Em 2006, mudou-se para Rondonópolis e começou a trabalhar, ganhando
cerca de R$ 3.000 por mês. Engordou 24 quilos no primeiro ano que passou
ao volante. Casou-se.
O trabalho é constante, mas as transportadoras têm dificuldades para
encontrar novos motoristas --com o desemprego próximo do seu menor nível
histórico no Brasil, os trabalhadores encontram muitas outras
oportunidades em profissões menos cansativas.
"Não há banheiros nem áreas de descanso decentes, e a poeira está por
todo lado", queixou-se o caminhoneiro Aguinaldo da Silva Tenório, 28,
numa parada do trajeto.
Os caminhoneiros também se queixam dos perigos --roubos ocasionais e estradas ruins e congestionadas.
Com frequência, os motivos de maior preocupação dos motoristas são seus próprios colegas.
Na pressa de chegar ao porto --muitos são pagos por frete--, fazem
ultrapassagens imprudentes. Muitos também usam cocaína e "rebite", uma
droga derivada de anfetaminas, para se manterem acordados.
"Quando você está sonolento, resolve, mas você pode acabar causando uma
grande confusão", diz o caminhoneiro Ademir Pereira, 36, que admitiu ter
usado "rebite" uma vez. Já Mendonça diz que nunca consome drogas para
ficar acordado.
OLHOS ABERTOS
Mais de 1.200 caminhoneiros morreram no ano passado em rodovias federais, segundo dados da Polícia Rodoviária Federal.
Para reduzir o consumo de drogas ao volante e diminuir o número de
vítimas, o governo recentemente determinou pela primeira vez um período
mínimo de descanso para os caminhoneiros.
Motoristas contratados por empresas, que são a maioria, agora devem
passar no máximo oito horas por dia ao volante. Para os autônomos, a
jornada pode chegar a 13 horas.
Na terça-feira à noite, Mendonça dormiu em outra área de descanso. Ao
meio-dia de quarta, ele parou em um restaurante já no norte do Estado de
São Paulo. Lá, uma funcionária elogiou a nova lei.
"Antes, a gente via os caminhoneiros entrando aqui com os olhos quase
fechados", disse Nilda Pereira Alves Pinto. "Agora eles não ficam mais
com tanta pressa."
Poucos discordam dos motivos da lei, mas alguns se queixam de que está mais difícil cumprir prazos, e que os custos aumentaram.
"Se não nos deixarem dirigir durante a noite, não haverá caminhões
suficientes", disse o caminhoneiro autônomo Marcelo Galbati, que
esperava o conserto de um pneu.
Na noite de quarta-feira, a reportagem passou por fora de São Paulo e o
tráfego ficou mais pesado à medida que caminhões de todo o Brasil se
afunilavam nas duas rodovias que dão acesso a Santos, a cerca de 80
quilômetros da capital paulista.
Mendonça pagou um pedágio de R$ 150, mas precisou dar uma volta e pagar
de novo depois de descobrir que todas as áreas de descanso estavam
cheias.
Ele já havia ultrapassado a jornada de trabalho máxima, mas não tinha onde parar.
Às 2h, quando o caminhão descia a serra em meio à Mata Atlântica, um
acidente paralisou a rodovia. Uma hora depois, o veículo chegou a uma
parada de descanso.
"A coisa está feia", disse uma atendente, acenando para que Mendonça
tentasse a sorte buscando uma vaga para estacionar, após 20 horas ao
volante.
Na manhã de quinta-feira, Mendonça esperava autorização para seguir até o
terminal portuário, a 20 quilômetros dali, onde a companhia
norte-americana de commodities Archer Daniels Midland Co. recebe os
caminhões com grãos para então despachar o produto em navios.
O porto é famoso por sua burocracia e não dá conta do crescente volume de carga que recebe.
Só depois das 16h o terminal ficou disponível para Mendonça. A essa
altura, porém, descarregar significaria ir embora do porto bem tarde, e
novamente enfrentar dificuldades para achar uma área de repouso.
Por isso, Mendonça decidiu dormir na área de espera do terminal.
Só na manhã de sexta-feira, quase uma semana depois de deixar
Rondonópolis, Mendonça conseguiu finalmente levar o caminhão para uma
plataforma e descarregá-lo, a poucos metros dos navios que iam sendo
enchidos com grãos com destino a outros continentes.
O valor da carga de 37 toneladas: US$ 10.200. O custo do frete: US$ 3.800.
Imagens desta repostagem em: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1179587-a-longa-e-brutal-jornada-de-um-caminhoneiro-ate-um-porto-no-brasil.shtml
Fonte: Folha de São Paulo
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